Saramago e os churrascos…
Sou um fidelíssimo devoto de “São” Saramago, um desses raros santos que surgem expontaneamente, à margem de denominações, e trazem consigo uma doce imperfeição: são santos sem milagres, e tão despretenciosos que seu culto prescinde de dogmas.
Melhor, a eles é refratário.
Daí a generosa possibilidade de uma devoção livre de amarras litúrgicas, de cãnones, senão de qualquer outra coisa mais simples, que carregue em si apenas um pouco de racionalidade, este tesouro abundante que a maioria de nós, humanos, por dificuldade no uso, encara como um fardo pesado. Exige também um tipo específico de amor à Humanidade: aquele sem intermediários, sem pontes, essencialmente humano.
Como se vê, um devotamento tão simples como um churrasco.
Há quem ame churrascos e não goste de literatura. Também, quem ame a ambos. Não discriminamos ninguém. Mas um espírito bem alimentado, convenhamos, não é coisa que se despreze.
Há também quem diga que ninguém sai impune de um bom churrasco. Come-se demasiado. Culpa. Mas uma culpa gostosa, satisfativa.
A mesma coisa com Saramago: jamais saímos impunes dos seus livros, da sua literatura, da sua visceral humanidade. Das suas passarolas. Sentimo-nos tanto deliciosamente culpados quanto purgados. Melhores. E não é milagre, acredite.
Em seu blogue “O caderno de Saramago”, nos dá uma pista para que se compreenda como ele, escritor, se contruíu, se constrói e reconstrói.
Abril 8, 2009 by José Saramago
Isto a que chamam o meu estilo assenta na grande admiração e respeito que tenho pela língua que foi falada em Portugal nos séculos XVI e XVII. Abrimos os Sermões do Padre António Vieira e verificamos que há em tudo o que escreveu uma língua cheia de sabor e de ritmo, como se isso não fosse exterior à língua, mas lhe fosse intrínseco.
Nós não sabemos ao certo como se falava na época, mas sabemos como se escrevia. A língua então era um fluxo ininterrupto. Admitindo que possamos compará-la a um rio, sentimos que é como uma grande massa de água que desliza com peso, com brilho, com ritmo, mesmo que, por vezes, o seu curso seja interrompido por cataratas.
Chegam dias de férias, uma boa ocasião para entrar nesta água, nesta língua escrita pelo Padre Vieira. Não aconselho nada a ninguém, mas digo que vou mergulhar na melhor prosa e vou desaparecer estes dias. Alguém quer acompanhar-me?”
Se você estiver em férias, acompanhe-o.
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