Kaftas e um passeio entre o Céu e as Trevas.
Uma das formas sublimes, senão divinas, quiçá epifânicas, de se degustar um boizim-ralado é a kafta, delícia da culinária árabe, perfeita para a brasa.
Mas, antes de falarmos da delícia, proponho uma conversinha adulta sobre carne-moída.
Repare na foto. Pois, é. Acho que vale a pena. Prepare o estômago.
Segundo os teólogos de inspirações maniqueístas mais empedernidas, as epifanias são paradoxos perceptivos que podem levar tanto ao deslumbramento, ao êxtase absoluto quanto à mais pavorosa das experiências humanas. No sentido figurado: tanto podemos experimentar as maravilhas dos jardins celestiais ou, vade retro, os espinhosos e fumegantes mármores do Inferno.
Trágico isso, né?
Né, não. No caso da carne moída, num tem negócio: é o Céu ou o Inferno. Coisa medonha, de arrepiar.Mas, antes de falarmos da delícia, proponho uma conversinha adulta sobre carne-moída.
Repare na foto. Pois, é. Acho que vale a pena. Prepare o estômago.
Segundo os teólogos de inspirações maniqueístas mais empedernidas, as epifanias são paradoxos perceptivos que podem levar tanto ao deslumbramento, ao êxtase absoluto quanto à mais pavorosa das experiências humanas. No sentido figurado: tanto podemos experimentar as maravilhas dos jardins celestiais ou, vade retro, os espinhosos e fumegantes mármores do Inferno.
Trágico isso, né?
Para ilustrar o tema, roubemos o título, apenas o título, de um filme recheado de sordidez: “Bonitinha, mas ordinária”? Olha o Nélson Rodrigues de novo.
Numa cena inventada aqui e agora, você, o ator principal, vai ao açougue para comprar carne moída, porque, mais tarde, irá preparar o jantar para a mulher mais maravilhosa que já conheceu.
Primeiro jantar a dois, logo com carne moída?..Roteirinho muquirana, né?
Na vitrine do açougue, lá está ela na bandeja, moidinha da silva, vermelhinha como um morango, refastelada numa cama de alfaces frescas e tenras...
Num rompante da imaginação absurda, mas verossímil, você a compara à uma linda, juvenil e fogosa ragazza italiana. Mas não sabe que ela é nascida no Bixiga, o que não quer dizer que seja paraguaia, apenas que não é original. Mesmo assim, é poderosa. Sensual. Irresistível. Com seus encantadores rubores de falso recato e idéias nada recatadas. Show de bola!
Você não pensa duas vezes: vou levar. É minha, é minha, é minha...
E ela responde, rodrigueanamente, num devaneio catártico e decisivo:
“Não, por favor, não quero, não faz isso, não posso. Sou pura! Não, quero sim! Faz, sim, que eu quero, desgraçado. Vem, me compra, me leva, me sente, que sou toda tua!”. Ou então, “Não faz isso comigo, maldito, não me olha desse jeito... Me olha, sim, me leva, cachorro, me toma, me pega, me bota na panela que eu vou gamar...”.
Refém dos seus instintos mais impublicáveis, você cede. E leva.
Em casa, tempera a bicha no capricho e bota na panela. Quando começa a chiar, o primeiro alerta: um cheirinho esquisito, lá no horizonte, ainda meio indefinido. Discreto. O instinto faz você apurar as narinas. E você funga, funga, funga, que nem um cão farejador, mas não acha. É impressão, é impressão, repete com seus botões, sempre céticos. E mudos. Os vapores aumentam e, de novo, o cheirinho estranho. Esquisito, você diz em voz alta, agora para as paredes, porque até seus botões já sabem de onde vem o cheiro ruim.
A carne começa a fazer água. Sempre faz. E quanto mais água faz, mais o cheiro sobressai. Ó rimas! É da carne mesmo, você conclui, inconformado como marido traído. Aí, a batalha na alma: sua memória olfativa não consegue distinguir direito que cheiro é. Podre? Não, isso não é cheiro de podre, é de outra coisa. Nem de estragado. Mas parece. Bom não é. Será que a carne tava passada? Mas tava tão vermelhinha, tão bonita, com cara de fresca. Será que é carne de segunda? Deve ser.Vou botar mais tempero para ver se melhora.
E, aí, entope a carne de temperos, como se fosse fazer uma essência de sabonete de ervas, não um prato culinário para a amada. Meio desconfiado, mas confiante na saída, termina de aprontar a bonitinha, mas ordinária.. Experimenta. Na junção das mandíbulas, a imediata reação ao excesso de temperos. Chega dói. Aí, torna a apurar as narinas e as papilas para encontrar resquícios do cheiro ruim no na carne e no molho. Fica em dúvida. Experimenta de novo. Sente lá longe. Ta uma bosta! Mas, seu otimismo incorrigível o ajuda: Ela nem vai notar...
Na hora marcada, a campainha toca. É ela, diz seu coração levemente descompassado.
À linda mesa, sob luz de velas, ela, mais linda ainda, dá a primeira garfada.
A primeira é a que conta, num tem jeito, meu chapa.
Ela mastiga, mastiga, mastiga, lentamente, sem olhar para você, um poço de aflição e culpa prenunciada.
Antes de ela terminar de mastigar e engolir a gororoba, você se trai: Tá bom?
Ela hesita o milésimo de segundo fatal e necessário para você ter certeza de que não está.
Tá gostoso, sim, mas acho que você carregou um pouquinho nos temperos, disse, encarando-o E você, em desgraça, vê a verdade saltar daqueles belíssimos e sinceros olhos azuis: Está uma m...!
Mulheres sabem ser perversas e implacáveis.
Bem, o resto da cena e da noite já não importam. Corta! O filme acaba.
Na platéia, primeira fila, o açougueiro, com ar de Mefistófeles, dando uma aquela risadinha nojenta...hihihihihihihi!...
Carne moída não tem cara nem corte. É o vale-tudo dos açougues. Os doutos magarefes não têm o menor pudor de meter na máquina, além das aparas de carnes de todos os tipos, nada discretos pedaços de sebo, de aponevroses e, se segura, malandro: aparas de bucho, tingidas com fígado de porco. E não pára por aí. Você corre o risco de levar também doses cavalares de nitrito ou sulfito de sódio, um pozinho branco que “recupera” a cor da carne já melada, acinzentada, imprópria, cujo uso é proibido por lei, dadas as suas propriedades cancerígenas e alergências...
Daí, aquele fedorzinho quando a carne começa a chiar na panela não quer dizer, necessariamente, que a carne está podre, mas que é uma mistura de coisas ruins, de má qualidade, que ninguém compraria e cujo destino, se a ganância não fosse tanta, deveria ser o lixo.
Uma outra dica: Jamais peça um quilo da carne tal “para moer”. Você vai levar o pior pedaço da carne tal ou de outro corte qualquer, porque, após moída, repita-se, a carne não tem cara. Peça primeiro um peso de chã, por exemplo. O açougueiro vai perguntar, solícito como uma serpente: Em bife ou inteira, patrão? Responda, sem pena. Inteira! Após pesada, antes dele embrulhar, peça para ele dar uma limpeza e passar na máquina. Duas vezes, por favor!.
Eles ficam com ódio! Mas você não foi enganado.
Agora, que já passeamos ligeiramente pelas bordas do Inferno, saltemos felizes para o Céu, onde, imagino, anjinhos barrocos ficam mais fofinhos comendo kaftazinhas bem feitinhas, com carnes de qualidade, que você mandou moer sem dizer, antes, para o açougueiro que eram para moer, e tempericos que a tornam irresistivelmente saborosas.
E qual a melhor carne para uma boa kafta? Uma pergunta justa.
Na maioria das vezes, as mais utilizadas são as de segunda e o patinho, uma carne híbrida, que tem cara de primeira, mas alma de segunda. O fato de ser um músculo quase limpo não torna o patinho uma carne melhor. É duro e seco. Não gosto.
Respondendo, então: só utilizo, moídas, em qualquer prato, a chã (coxão-mole) ou o miolo da alcatra
Heresia? Não. Qualidade. Ponto. Sabor. Ponto. Suculência. Ponto. Me entende?
A receita da Kafta do Ceguinho é simples, facinha facinha.
1 quilo de chã ou alcatra
80g de toucinho de fumeiro (bacon) passado no processador
1 colher de sopa de alho bem socado -generosa -
300g de cebolas bem picadinhas
5 colheres de sopa de molho shoyo de qualidade
1 colherinha de chá de pimenta do reino e outra de cominho (opcionais, tem gente que não pode, tem gente que não gosta...).
½ xícara de folhas de hortelã bem batidinha
½ xícara de salsa e cebolinha bem batidinhas.
sal a gosto - lembre-se que o molho shoyo é bem salgado.
Preparo:
1- Passe o toucinho no processador ou moedor até obter uma pasta. Reserve.
2 - Em outra vasilha, misture bem todos temperos.
3- Junte o toucinho e os temperos à carne. E trate de misturar bem. Muito bem mesmo.
Cansou? Os bracinhos tão doendo? A massa parece homogênea?
Tá pronta!
Agora, molhe as mãozinhas para não grudar, e molde a mistura em pequenos “charutos”, espetando-os em palitos de bambu previamente molhados (resistem mais ao calor da churrasqueira).
As kaftas aprontam rápido. Minutinhos de um lado e do outro e do outro...
Começaram a dourar? Sirva.
Dá para fazer 12 kaftas.
6 comentários:
Que inveja, vc tem paixão pelo que vc faz. Parabéns! Admiro pessoas assim.
Obrigado,.
Volte sempre!
kkkkkkkkkkk... Que barato. Muito bem escrito. Parabéns, já dei Ctrl + D...
Obrigado, turbinado.
Abraços.
na internet não há postagem antiga se ela parece atual, há postagem que enxergam a alma por isso vão longe no espaço e no tempo. Bingo pelo humor e para sua postagem, continue ceguinho assim
Concordo sobre não haver postagens antigas na internet... volta ou outra ela reaparece para algum interessado! E a qualidade dessa postagem também é algo de se comentar: sensacional!
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